quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Porta aberta

Ele me disse para escrever. Entregou-me um pequeno pedaço de papel, quase do tamanho de um post-it e um lápis, já com a ponta arredondada, grossa. Não era assim que eu queria. Sempre gostei de escrever com canetas e lápis de pontas mais finas. E aquilo me incomodava. Não tinha vontade de escrever nada. Estava um pouco tolhida, quase acuada.
- Você precisa tentar... - Disse ele calmamente, quase cantarolando as palavras.
- Não sei sobre o que escrever, por isso, vim até o senhor pedindo ajuda. Estou completamente bloqueada.
- Eu sei disso. Mas eu não sou um tipo de terapeuta, nem nada disso. Se eu tiver que fazer esse tipo de trabalho, com certeza, te cobrarei bem mais por isso.
- O que estamos fazendo, então? Estou te pagando pra me ajudar a sair desse limbo. É o seu trabalho.
- Por isso mandei escrever.
- Nesse papel minúsculo? Com esse lápis terrível?
- Sim.
- Não posso. Você está me ofendendo!
- Não se altere, por favor. Não precisa gritar. Escreve qualquer coisa aí, nesse papel minúsculo, com esse lápis terrível. - Ele ria com os olhos e sorria com o cantinho esquerdo dos lábios. Estava começando a ficar irada. Eu me irritava facilmente agora.
- Ok.
Escrevi um "não" com todas as letras maiúsculas, usando todo o espaço do papel.
Ele sorriu largamente, estendeu a mão direita na direção da porta e disse:
- Acabou o seu tempo. Até a próxima, senhorita Melinda.
Eu me levantei, peguei o papel, rasguei em minúsculos pedaços e joguei na mesa dele. Depois dei uma espalmada na mesa e saí, deixando a porta aberta.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

O som familiar do molho de chaves, enquanto uma das chaves entrava e movia o ferrolho.
Eu queria abrir os olhos e não fingir que estava dormindo mas eu não resisti.
Assim que ele entrasse, eu olharia no relógio, rapidinho, que horas eram, sem que ele percebesse.
Mas ele não foi até a cozinha, ou até ao banheiro, ele veio até mim. Ele se deitou no chão, pertinho do sofá, onde eu estava e pegou na minha mão que estava caída do sofá.
Ele me deu um beijo na bochecha e disse que tudo ia ficar bem. E eu confiei.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Fluido

É como se se escorresse de dentro do seu coração e fosse para todo o seu corpo.
Não está mais no seu coração mas ainda faz parte de você.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Enquanto embalo minhas coisas em sacolas de supermercado, decidindo rapidamente quais roupas levar e quais deixar, o que amo e o que desamo, vou recitando na mente aquela música sobre largar tudo e fugir. A música faz tudo parecer tão romântico e belo e era nisso que eu pensava.
Ouvi passos do lado de fora da casa. Parei por um instante e tentei aguçar ainda mais a audição, tentar discernir o que era, se eu corria perigo. E eu sei que sim. Eu estava fugindo por minha vida, não era nada romântico, nem bonito deixar meu lar para trás. Esgueirei-me pela porta dos fundos, dei uma breve olhada. A “barra” estava limpa. Escutei a maçaneta da porta da frente girar bem devagar. Eu deveria correr para a rua, mas esperei.
As sacolas com meus pertences começaram a pesar. Cada milissegundo de tensão parecia que imputava mais uns quilos a cada sacola. Eu deveria correr. Eu sabia disso. Mas algo me prendia ali, próxima à porta dos fundos, já do lado de fora da casa. Eu podia ver a pequena passagem que antes era um portãozinho e agora pregado com algumas tábuas de madeira podre. Eu logo estaria “livre”. A música veio novamente à minha mente e me desconcentrei dos barulhos no interior da casa. Recobrei a atenção total, segurei a respiração, ouvi.
Os passos estavam na cozinha. Abria as gavetas de talheres, revirando tudo, os sons parecendo uma banda orquestrada. O que ele está procurando? Agora está na sala. Ligou a TV. Trocou de canal e estava no canal de compras. Um número era repetido junto das palavras “compre” e “ligue”. Não fez sentido pra mim. A curiosidade me consumia, junto com medo, tensão e desesperança.
Se ao menos eu soubesse porque tudo aquilo estava acontecendo, talvez o que viesse a seguir, ou até a minha própria morte fizessem mais sentido, talvez fosse como um daqueles mártires importantes, talvez fosse algo que valesse a pena saber.

[continua...]