segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Anita e a mágoa

Anita estava tão magoada; parecia que andava curvada com um punhal cravado no peito.
Se tirarmos o punhal ela sangra e morre. Se deixarmos, ela sente dor, anda curvada pelo resto do caminho, mas sobrevive e convive, e vive com aquela dorzinha incômoda, constante...
Então deixemos o punhal lá. Bem no meio do peito de Anita.

Eu queria que ela falasse. Eu queria poder traduzir em palavras o que eu via nela.
Eu perguntei então.

"Eu estou decepcionada. Tive muitas expectativas frustradas."

(Queria que ela falasse mais. Como pode, eu ali, sentada, com os cotovelos sobre os joelhos. Atenta voyeur do sofrimento alheio. Queria aquela dor desnuda. Queria entender... Intrigante como a dor dela me interessava.)

Silêncio.

1/4 de hora de silêncio eterno. Música ao fundo.

Agora a frustração dela parecia ter sido toda transferida para meus rins. E passei a imaginar a dor. Eu vi assim:

Tinha um barco à deriva e um timoneiro com barbas ruivas, totalmente ébrio. Manco. Gritava com todos à bordo. Não eram muitos, uns quatro, talvez. Um deles que esfregava o chão, levou um chute daquela perna de pau. Acorda seu vagabundo! Trabalhe! Ele era franzino. Um menino ainda. Cheio de sonhos, mas agora um frustrado lavador de chão. Sua barriga doía. Seu hálito fedia. Suas expectativas todas, todas quebradas como um jarro de barro lançado à gravidade. E agora nada mais importava. O timoneiro fazendo-se capitão. Todos mortos. Barco à deriva. Ainda não mortos. Mas em breve. Era uma certeza. Assim como o bêbado não tinha juízo sobre si, assim como não poderia fazer o barco se salvar, assim como não poderia evitar a tempestade que estava chegando, assim como.... assim como não poderia evitar que todos morressem.
Decepção por confiar, por acreditar que podia ter sido diferente. Que poderia haver glória de alguma maneira...

Silêncio ainda.

"Anita!" - gritei como num espasmo, depois de voltar à realidade como que numa epifania mal sucedida.
Eu vi sua dor, sua decepção. Eu te entendo...

Ela me abraçou. Esqueceu a mágoa, fez como que uma continência de mãos e trêmulas e disse: "vamos achar o capitão!"

Sim pro não

Resolvi dizer mais sim. Disse também mais "nãos".
Disse sim pro não.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Sempre a dor... sempre ela

Por que sempre abaixo a cabeça diante da dor?
Eu devia era erguê-la, isso sim! E agradecer a Deus por sentir.
Valha-me!, pois quantos "humanos sem sentidos" vejo viver.
Com instintos animais, somente se contentam em passar pela vida, sem plenamente vivê-la.
É a dor, sempre ela, me mostrando o quanto a vida vive em mim.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

à margem

Hoje eu conheci uma senhora com o sobrenome de Boa Morte e fiquei pensando "quando a morte seria boa?"
Ela não teve pais. Só mãe. Com o sobrenome Boa Morte também; e ela morreu jovem.
Perguntei para a senhora quem a criou.
- Minha avó, que também morreu cedo. - respondeu a senhora.
- E a senhora nunca se casou?
- Não. Para quê? Só vejo gente reclamando de seus casamentos.

Silêncio.

- A senhora mora onde?
- Cada dia num lugar.
- Agora a senhora mora com quem?
- Com dona Maria e o marido dela. Eles me deixam dormir lá.

Eu nem tive mais o que dizer. Mas me arrisquei:
- Tenha fé! Vai dar tudo certo.

Ela agradeceu:
- Fica com Deus, minha filha!

Abaixei a cabeça, agradeci e desejei que a morte não a encontrasse jamais ou que antes ela tivesse um lar, um filho ou um cachorro. Algo que fosse seu. Algo que ela deixasse ao mundo, alguma parte dela, para que alguém pelo menos saiba que ela viveu, que ela sofreu mas que sentiu e que alguém notou...