quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Chuva de primavera

Começou a chuva. Está forte e barulhenta. O ventilador que girava fraquinho, para espantar as moscas, agora oscila. Ora ventania, ora calmaria. 

Troveja e pulo com um estalo, meu peito dispara e calço os chinelos de borracha. O medo infantil de que um raio caia na minha cabeça. Logo eu, que não tenho grande altura. O raio talvez escolha algo mais grandioso, mais alto. Talvez não, com certeza. Mesmo assim, já estou calçada. Lembro da voz de minha mãe, mandando calçar os chinelos, ficar longe das janelas e dos espelhos.

Vou até a janela e fecho tudo muito bem, inclusive as cortinas. Fica escuro demais. Parece noite, mas são duas da tarde, eu acho. Não ouso olhar as horas. Quero aproveitar e criar um momento que seja único, não vivido por ninguém. Esta pode ser, sem nenhum problema, a vigésima quinta hora. Será somente minha.

Desligo o ventilador, ouço apenas a chuva. E os trovões vão ficando distantes como gigantes caminhando em outra direção levando seu rastro de destruição, esmagando casas, carros e fazendo as pessoas gritarem. Toda a algazarra do medo caminhando para outro lado da cidade, indo embora, ouço dizer. 

Vou até a janela e puxo um lado da cortina para ver o dia cinzento. Consigo ver numa linha horizontal da pequena cerca de arame, duas gotas opostas convergindo para o mesmo ponto onde o arame pende um pouco pra baixo. Elas se encontram, ficam juntas por milissegundos e caem. Assim se deu com as outras depois delas e outras e outras. Esse fato parece tão certo como a morte, quando duas gotas d'água se encontram numa pendente linha horizontal, elas morrem. Talvez virem poças, talvez evaporem, talvez virem rio, ou mar. Não sei pra onde vão. Só sei que não são mais duas gotas, elas se juntam e se destroem.

Prefiro acreditar que farão parte de algo mais grandioso, o ciclo da água, não é mesmo? O ciclo das coisas vivas que morrem para se tornarem outras coisas vivas numa eternidade que eu não sei se existe.

Quando meu pensamento se desvia para a mais tristes das possibilidades, a de as gotas secarem para sempre e a terra se transformar num grande deserto, ouço minha mãe novamente dizendo em minha cabeça "saia de perto dessa janela. Não tá vendo que tá caindo raio?" E esse solavanco é o meu despertar de como pensar em gotas de chuva pode ser ruim e doloroso. O monstro gigante que rosna e destrói tudo no caminho está de volta. Trovões altos e assustadores, a chuva fica mais regular.

Ligo o ventilador e volto ao meu livro de sempre.